Mas a verdadeira posição da comunidade científica portuguesa em relação ao que se passou, está retratada ao pormenor nesta entrevista que o prof. Adriano Vaz Serra, Director da Clínica Psiquiátrica dos Hospitais da Universidade de Coimbra, concedeu a Jorge Van Krieken e que ele publicou no site que então possuía, Reporter X, em 30 de Outubro de 2003:

Jorge Van Krieken

Recentemente, em Portugal, um psiquiatra e um pedopsiquiatra afirmaram na TV, e em outros media, que podem garantir (devido aos testes que a sua equipa faz) que 32 crianças, adolescentes e adultos (dos 11 aos 22 anos) estão a dizer a verdade quando acusam A, B e C (pessoas específicas) de abusos sexuais. Isto é possível?

(Nota minha: o psiquiatra é o Dr. Álvaro de Carvalho e o pedopsiquiatra é o Dr. Pedro Strecht)

A. Vaz Serra

O apuramento da verdade dos factos não pode ser obtido apenas pela aplicação de

testes. Antes deve ser conseguido pela junção de provas cujo conteúdo tenha sido debitado de forma espontânea e não seja influenciado por processos de sugestionabilidade ou de ganhos secundários.

Jorge Van Krieken

O mesmo pedopsiquiatra foi questionado numa entrevista sobre se existia forma de

testar o relato de um menor vítima de abusos sexuais. Respondeu afirmativamente, explicando que «há testes de avaliação universais. A prova de inteligência WISC é utilizada em quase todos os países da Europa. As provas de funcionamento de personalidade das crianças (TAT e RORSCHASCH), por exemplo, permitem testar o seu grau de desenvolvimento e de maturidade emocional e intelectual, como também a existência de perturbações de personalidade». Adiantou também que «os miúdos quando estão a falar, têm reacções emotivas, de tristeza e ansiedade, etc. E há, na maioria das vezes, sintomatologia, quer psíquica, quer física, que também é validada. A nossa equipa elimina com rigor qualquer dúvida que possa subsistir. Além disso, as

crianças foram também avaliadas pelo Instituto de Medicina Legal, que emitiu os seus pareceres, nos campos físico e psicológico».

Qual é a sua opinião sobre esta metodologia ou justificação científica, utilizada por estes médicos e técnicos para confirmar se um testemunho ou alegação (de crianças, adolescentes e adultos) não é falso (é verdadeiro) quando acusam alguém em particular de abuso sexual?

A. Vaz Serra

O teste WISC está limitado à avaliação da inteligência e a nada mais. Os testes projectivos que foram utilizados para avaliação da personalidade (TAT e RORSCHASCH) são considerados, em termos psicométricos, de pouca fiabilidade. De qualquer forma a utilização dos testes mencionados não tem qualquer relação com a prova da verdade ou mentira das alegações efectuadas. Por outro lado, quando aparecem manifestações psicopatológicas estas devem ser consideradas um "efeito" que deve estar subordinado a determinada "causa". O nexo causal só pode ser estabelecido depois de serem consideradas todas as alternativas eventualmente determinantes e feita prova que alguma delas e não outra está relacionada com tais manifestações.

Jorge Van Krieken

Estes médicos são actualmente também terapeutas de algumas destas crianças e jovens e, ao afirmarem que eles dizem a verdade relativamente ás acusações específicas que proferem contra determinadas pessoas, estão na realidade a assumir publicamente que essas pessoas cometeram esses crimes. Este tipo de afirmações públicas, como privadas, é aceite em Portugal pela Ordem e/ou restantes médicos? Porquê?

A. Vaz Serra

Fazer declarações em termos de pressupostos dados como certos mas que não estão

ainda provados não é eticamente correcto. Determinam uma onda emocional que influencia a opinião pública e que só prejudica o apuramento imparcial dos factos.

 Jorge Van Krieken

Um médico pode ser simultaneamente terapeuta e perito?

A. Vaz Serra

São dois planos distintos. Uma intervenção terapêutica traz sempre consigo o desenvolvimento de emoções, positivas ou negativas, que podem influenciar um parecer. Uma intervenção de peritagem deve ser isenta, imparcial, que procura reunir (sem influenciar) as provas da verdade. Não é aconselhável que as duas funções estejam associadas.

Jorge Van Krieken

Como é que se descobre uma falsa alegação?

A. Vaz Serra

Embora tenhamos tendência a confiar nas nossas memórias, há investigação que demonstra que o seu conteúdo nem sempre é rigorosamente exacto.

Em 1977 Elisabeth Loftus expôs uma série de testemunhas a dado acontecimento e, posteriormente, elaborou uma série de perguntas em que fez deliberadamente referência a um objecto que não existia na cena observada. Curiosamente cerca de 30% dos participantes testemunhou que tinham visto o objecto descrito como fazendo parte do acontecimento original (referido por Davies, 2001).

Porter, Yuille e Lehman (1999) contactaram os pais de um grupo de estudantes a quem pediram que relatassem algum acontecimento traumático relacionado com os filhos como, por exemplo, terem sido atacados gravemente por algum animal. Os estudantes foram então repetidamente entrevistados sobre o acontecimento referido pelos pais. O entrevistador, durante o relato, acrescentou um outro acontecimento, falso mas plausível, supostamente mencionado pelos pais. No final da entrevista 26 % dos estudantes tinha recuperado por completo a memória do acontecimento falso e, a este número, juntaram-se mais 30 % que se lembravam de ter sido verdadeiro pelo menos um dado pormenor do acontecimento falso (mencionado por Davies 2001).

Para além destes aspectos é igualmente aceite que, no processo reconstrutivo de uma

memória, quando a pessoa tenta "completar" e dar coerência lógica ao que é evocado, há a possibilidade de ocorrer um processo de auto-sugestão (Lindsay e Read, 1994).

Em síntese: devem ser consideradas como suspeitas todas as afirmações em que possa existir qualquer processo de auto ou hetero sugestionabilidade ou a presença de eventuais ganhos secundários. Nos casos assinalados verificou-se que eram tidas como reais o que apenas eram "memórias semânticas" induzidas pelo reelaborar da descrição das narrativas. (Davies,G.M. (2001) - Is it possible to discriminate true from false memories? - Cap. 7, pp. 153-174 in "Recovered Memories ; Seeking the Middle Ground", G.M. Davies e T. Dalgleish (eds.) - John Wiley & Sons, Ltd.)

 Jorge Van Krieken

Há algum tipo de metodologia que as autoridades policiais devessem seguir para investigar este tipo de acusações e alegações?

A. Vaz Serra

Este aspecto é importante porque qualquer pessoa pode ser acusada por outra com base na reminiscência de dado acontecimento. Para que a acusação seja tida como verdadeira é necessário provar-se que o caso realmente ocorreu.

Graham Davies (2001), já citado, refere que em 1955 o Supremo Tribunal alemão determinou que, antes de qualquer julgamento, todas as alegações de abuso sexual feitas por crianças deviam ser avaliadas na sua credibilidade por um psicólogo qualificado. Segundo Davies as regras que vieram a ser criadas ficaram a dever-se ao trabalho de Udo Undeutsch  (1989). Undeutsch referia que as memórias reais se diferenciavam das falsas memórias (derivadas da fantasia), tanto por aspectos qualitativos como quantitativos. Este autor sugeriu diversos critérios que vieram mais tarde a ser reelaborados por vários cientistas, entre os quais se podem assinalar, de acordo com Davies, os nomes de Steller e Kohnken (1989) e Raskin e Esplin (1992).

Este trabalho deu origem à criação de uma metodologia de procedimento que tem sido

denominada por "Avaliação da Validade das Afirmações". Graham Davies menciona que esta avaliação é realizada tendo em conta três estádios diferentes.

O primeiro corresponde a uma entrevista semi-estruturada em que a criança, no

começo, faz uma descrição livre da ocorrência e de seguida responde a questões abertas, que orienta consoante o seu desejo. Esta primeira parte é gravada e posteriormente é reproduzida conjuntamente com quaisquer anotações tomadas a respeito do comportamento ou do procedimento da suposta vítima.

O segundo estádio, usualmente designado por "Análise de Conteúdo Baseado em Critérios" diz respeito, tal como o nome indica, à análise do conteúdo tendo em conta que há critérios que ajudam a diferenciar as afirmações verdadeiras das falsas.

No terceiro estádio - denominado por "Lista de Controlo da Validade" - o conteúdo anteriormente colhido é re-observado tendo em atenção a inteligência e grau de sugestionabilidade da criança, a sua história sexual e a consistência do relato feito.

De acordo com Graham Davies (2001), a "Análise de Conteúdo Baseada em Critérios"

tem em conta características gerais do acontecimento, conteúdos específicos e conteúdos relacionados com motivação. Cada um destes pontos tem aspectos que devem ser tidos em conta.

No que respeita às características gerais dos acontecimentos, refere Graham Davies,

são tidos como verdadeiros os relatos que apresentam uma boa coerência e consistência lógica e com uma quantidade significativa de pormenores respeitantes aos intervenientes e aos actos praticados. Em relação aos conteúdos específicos é de esperar que a suposta vítima descreva os factos com precisão, em relação a determinado tempo e lugar, com uma sequência clara do desenvolvimento de acções e reacções relacionadas com a criança e o adulto, entre as quais deve ser apreciado o conteúdo do discurso ocorrido na altura. A descrição de acontecimentos inesperados como, por exemplo, "Ele parou porque a certa altura tocou o telefone" ou de acontecimentos supérfluos - "Foi num dia em que estava a chover muito" - são tidos como abonatórios de uma maior credibilidade. Por último, no que respeita aos conteúdos relacionados com motivação, nos relatos autênticos costumam aparecer correcções ou acrescentos espontâneos, bem como a admissão de falhas de memória ou de conhecimento e os outros pormenores assinalados no quadro anterior. Os relatos fantasistas, em contraste com os autênticos, costumam ser apresentados de forma mais estereotipada, fluente e segura.

Uma nova metodologia, para diferenciar as memórias verdadeiras das falsas, decorreu

dos estudos laboratoriais realizados por Márcia Johnson.

Esta autora referiu que as memórias se caracterizam por dados decorrentes de fontes

externas e de fontes internas em relação ao acontecimento original que as evoca.

As fontes externas ligam-se a três aspectos:

(a) - à informação perceptiva, relacionada com os canais sensoriais estimulados pela

experiência (o aspecto do indivíduo, o seu comportamento verbal e não-verbal, os contactos tácteis estabelecidos e outros pormenores relacionados com a captação feita pelos cinco sentidos).

(b) - à informação contextual, que diz respeito ao tempo e local em que o acontecimento ocorreu e (c) - à informação afectiva, que tem em conta a reacção emocional evocada pela ocorrência.

Por sua vez as fontes internas dizem respeito aos processos mentais despertados pelo acontecimento, entre os quais se incluem as associações com acontecimentos semelhantes, as reflexões sobre o ocorrido, as elaborações e interpretações.

Para além da descrita, uma outra metodologia de observação foi desenvolvida por

Márcia Johnson com técnicas de laboratório. A autora refere que os acontecimentos reais contêm maior informação proveniente das fontes externas do que das internas. Os acontecimentos reais caracterizam-se por uma informação espontânea, feita sem esforço, realizada de forma automática, em que o indivíduo "não anda à procura do que há-de dizer", não envolvendo por isso processos de tomada de decisão. Em contrapartida, os acontecimentos imaginados, manifestam uma preponderância das fontes internas, que reflectem as operações cognitivas que são activadas para elaborar a resposta.

A autora elaborou diversos estudos em que solicitou a diversas pessoas que relatassem um acontecimento efectivamente ocorrido, tal com uma ida ao dentista ou a uma biblioteca e igualmente um acontecimento imaginado. O acontecimento real tinha uma riqueza muito maior de informação perceptiva, temporal e contextual do que a ocorrência imaginada. A informação afectiva aparecia tanto no acontecimento real, como no imaginado, reflectindo provavelmente a preferência dada ao relato imaginado.

Os acontecimentos imaginados têm uma carência desproporcionalmente elevada de

indícios externos quando são comparados com as memórias de factos reais.

Jorge Van Krieken

Há algumas semanas atrás, uma procuradora do Ministério Público disse que na sua

experiência de 12 anos no Tribunal de Família, nunca viu uma criança a mentir no tribunal. Acha isso possível?

A. Vaz Serra

Com todo o respeito que me merece uma Procuradora do Ministério Público não acho

muito credível a sua observação. De facto tem-se visto que em tribunal uma criança pode não contar a verdade: por medo, por se sentir perturbada pelo ambiente e pela forma como as perguntas lhe estão a ser feitas, por coação, por reelaboração da memória ou devido à sugestionabilidade de terceiros. Para citar apenas um exemplo posso referir Shobe e Schooler (2001)2, que descrevem sete casos de memórias falsas, trazidos da casuística dos tribunais, todos eles influenciados pela sugestionabilidade exercida sobre o declarante.

Jorge Van Krieken

De acordo com a sua experiência neste tipo de situação, que conselhos daria a estas

pessoas que investigam este tipo de caso e às que acompanham terapeuticamente as crianças e jovens?

A. Vaz Serra

Os acontecimentos traumáticos ocorridos na infância e começo da adolescência podem dar origem a diversos efeitos. Um deles, a reacção ao trauma, com o aparecimento de um Distúrbio de Stress Pós-Traumático, em que predominam os sintomas de ansiedade (Shobe,K.K. E Schooler,J,W. (2001) - Discovering fact and fiction: case-based analyses of authentic and fabricated discovered memories of abuse - Cap. 6, pp.95-151 in "Recovered Memories - Seeking the Middle Ground", G.M. Davies e T. Dalgleish

(eds.) - John Wiley & Sons, Ltd.) e comportamentos de evitamento. Um outro,  consequências sobre o desenvolvimento da criança, reconhecidas pela ausência de formação de elos afectivos, uma auto-estima pobre e a quase inexistência de relações interpessoais. Pode igualmente acontecer a criança evidenciar um comportamento altamente sexualizado ou agressivo, crises dissociativas, comportamentos de

auto-agressão, estar predisposta ao consumo de drogas e mostrar-se inadequada a lidar com o stress e a ansiedade.

A vitimização na infância leva a que o indivíduo transporte consigo ao longo da vida

riscos potenciais para se tornar novamente uma vítima em adulto e, ao mesmo tempo, tenha uma menor capacidade de resistência quando confrontado com traumas na vida adulta.

Os factores, que colocam em risco uma criança de se tornar vítima directa da violência, propiciam igualmente que a criança testemunhe formas de violência dirigidas contra outras pessoas. Tais factos têm uma influência negativa, muito significativa, no seu desenvolvimento psicológico, interpessoal, emocional, cognitivo e neurobiológico.

Não há uma descrição típica que enquadre todas as situações de abuso.

O significado atribuído pela vítima ao acontecimento traumático é importante em relação às consequências futuras.

Os quadros clínicos psiquiátricos que as pessoas desenvolvem com mais facilidade em situações precoces de acontecimentos traumáticos correspondem a depressões e a manifestações mediadas pela ansiedade, entre as quais se pode assinalar a presença de um Distúrbio de Stress Pós-Traumático.

Há estudos que comprovam que um acontecimento traumático pode vir a ser relembrado apenas anos depois de ter ocorrido.

A sugestão induzida por terceiros, a auto-sugestão do próprio na reconstrução da

memória e o grau de confiança depositado na pessoa que gera a informação, são factores que influenciam a memória.

As pessoas que cuidam de crianças ou adolescentes nestas situações é importante que as ponham a salvo da repetição de qualquer acontecimento traumático e as coloquem num ambiente considerado seguro. É importante que as tratem de qualquer psicopatologia que eventualmente manifestem, pois há métodos de tratamento específicos aconselhados para casos destes. É igualmente significativo que uma vez ultrapassada a repercussão do trauma sejam criadas condições à pessoa para que "apanhe o comboio da vida", onde possa evoluir de forma saudável, se possa vir a tornar independente e a receber o afecto a que todo o ser humano deve ter direito.

A quem investiga estes casos repetiria que qualquer pessoa pode ser vítima da

acusação proferida por outra. No ajuizar dos factos deve ter em conta "o princípio da alavanca".

Com uma alavanca podem ser erguidos pesos muito grandes. Aplicando esta imagem ao ser humano podemos referir que, qualquer indivíduo, "com uma alavanca psicológica" pode erguer um mundo grande de ideias, desde as mais verosímeis, às mais irrealistas. O que é importante de ser analisado "não é o mundo que é erguido" mas sim "se a alavanca utilizada tem o ponto de apoio suficiente que o permita sustentar".